Janelas de Oportunidade para a Construção da Mente e do Comportamento Anangélica Moraes Gomes As necessidades básicas do ser humano envolvem desde a nutrição até o ambiente psicossocial; e na infância, exercem influência significativa sobre o processo de desenvolvimento. Ao conceituar saúde como bem-estar biopsicossocial, a Organização Mundial de Saúde fornece as bases para uma abordagem transdisciplinar da atenção integral à criança. A saúde da criança, portanto, deve abranger as condições para o seu pleno desenvolvimento, que inclui o crescimento físico, psicológico e social e a aquisição de habilidades, capacidades e comportamento humanos. Acompanhar o desenvolvimento da criança configura-se em mais do que consultar gráficos e tabelas para certificar sua saúde e seu desempenho. Envolve observar o modo como a criança estabelece contato com o meio circundante, percebe este meio, assimila a experiência cultural e se torna parte ativa do sistema de grupos sociais que constitui seu ambiente.
Exige um olhar sobre a criança como sujeito e sobre o lugar que ela ocupa nas relações familiares e sociais. Nesta perspectiva, é básico compreender o modo de interagir da criança - com o seu próprio corpo, com o outro, com o objeto, com o meio físico e com o meio social - e as etapas do seu processo de desenvolvimento, para percepção de desequilíbrios, suas causas e consequências, e também para estimulação de processos de aprendizagem, por meio de estratégias de prevenção de distúrbios e maximização das potencialidades de cada criança individualmente. O desenvolvimento é a história de como se constroem novas atividades mentais, a maneira como a criança vai adquirindo gradualmente modos de interagir com o mundo, caracteristicamente humanos e “herdados” socialmente. A forma de cada indivíduo realizar esta construção é uma assimilação individual da experiência histórica, uma atualização das transformações acumuladas por sua espécie: o desenvolvimento de cada um é uma história peculiar, que o particulariza e o distingue dos outros humanos. A construção do humano em cada indivíduo é o resultado do desenvolvimento da cognição, da capacidade de aprender a aprender, de decodificar o mundo, de adquirir estratégias para assegurar a sobrevivência, manter a saúde, o bem-estar. Estratégia cognitiva é o modo de interagir, no sentido de perceber e reagir ao meio circundante. O que diferencia o homem do animal é a forma como orienta o seu desenvolvimento: aprende a transformar seu comportamento instintivo, herdado, de recém-nascido, no comportamento do adulto, construído a partir de influências socioculturais. O complexo processo de adquirir um comportamento especificamente humano - culturalmente orientado, voluntário, dirigido a metas - é denominado desenvolvimento. O desenvolvimento é o resultado do entrelaçamento de dois processos fundamentais: maturação e aprendizagem. A maturação condensa os processos biológicos elementares que, ao longo do tempo, vão funcionando de modo cada vez mais complexo e específico, orientados por um programa geneticamente determinado. A aprendizagem diz respeito a processos psicológicos superiores, dependentes da fala na sua organização, e determinados sócio-historicamente pelas condições reais de vida de cada indivíduo. O processo de maturação prepara e possibilita uma determinada aprendizagem, enquanto o processo de aprendizagem estimula a maturação. Esta referenciação recíproca faz o desenvolvimento avançar. No processo de desenvolvimento, a criança adquire formas socialmente organizadas de interagir. Para os humanos, as formas básicas de interação abarcam as relações que um indivíduo pode estabelecer com seu próprio corpo, com outro humano, com o objeto, com o conjunto dos objetos do meio físico e com sua sociedade. A todo instante existe a possibilidade de interação nas diferentes esferas, mas, no curso do desenvolvimento, a cada etapa estão permeáveis canais específicos que se constroem no entrelaçamento da maturação com a aprendizagem. Através de distintas formas de interação, as relações que o indivíduo estabelece nos vários níveis transformam as estratégias cognitivas de concretas em simbólicas. A cada etapa do processo, transforma-se a estratégia cognitiva: novas e mais sofisticadas formas de receber e processar a informação produzem uma decodificação mais precisa do meio, levando a respostas adaptativas cada vez mais diferenciadas. Com base no que decodifica, o organismo responde com um comportamento, um conjunto articulado de reações oriundas de múltiplas e distintas partes do corpo. A aquisição de “formas de fazer” humanas acontece por meio do processo de internalização, com a apropriação individual de procedimentos culturais, pela transformação de operações externas concretas em operações internas simbólicas. Ao longo da sua história, a humanidade construiu dois tipos de instrumentos culturais para a cognição, para a decodificação do mundo: as ferramentas e os signos. As ferramentas são instrumentos concretos de trabalho, os objetos; os signos são os instrumentos simbólicos da comunicação, as palavras. A fala modifica qualitativamente o comportamento humano, permite pensar simbolicamente e encontrar, a cada momento, a resposta mais adequada para garantir ao homem sua sobrevivência, tanto na natureza quanto na sociedade. Com sua função de organizar a atividade mental, a fala é a responsável pela transição de um momento a outro do desenvolvimento. A internalização da fala - seu percurso de fala externa social para a fala egocêntrica, e depois até a fala interna - produz modificações qualitativas importantes no uso dos instrumentos que medeiam a cognição, marcando três distintos momentos de organização funcional sistêmica da atividade mental e do comportamento no curso do desenvolvimento. A organização sistêmica do MOVIMENTO, da ATENÇÃO e do PENSAMENTO, são etapas consecutivas, que permitem a estruturação de um modus operandi peculiar e individual ao longo de um desenvolvimento marcado pelas relações que a criança estabelece, em cada momento, com cada esfera relacional. Cada um dos momentos representa a internalização de uma função nervosa, seu processo de transição de formas elementares (concretas, biologicamente determinadas) para formas superiores (simbólicas, socialmente organizadas) de funcionamento. Esta transformação resulta da modificação no tipo de informação/sinal que produz a atividade do sistema nervoso central (SNC): sinais físicos, materiais, por meio dos órgãos dos sentidos (primeiro sistema de sinalização da realidade, instrumento concreto da cognição) ou sinais simbólicos da fala (segundo sistema de sinais, instrumento simbólico da cognição). Na transição entre cada momento, a fala, com suas diferentes funções, é o fator que intervém produzindo e instaurando as mudanças qualitativas na operação do SNC. Estas transições entre os sucessivos momentos de organização funcional sistêmica marcam períodos críticos do desenvolvimento, onde uma função nervosa mais organizada fornece a base para novas e qualitativamente superiores formas de operação do SNC, desde um comportamento elementar até formas exclusivamente humanas de atividade. Em cada um dos momentos de organização funcional sistêmica a criança atravessa cinco estágios relacionais: o corpo, o outro, o objeto, o meio físico e o meio social. Nesta passagem, acontece a modificação na qualidade das relações que a criança é capaz de estabelecer: deslocam-se de concretas a simbólicas gradualmente, com o SNC desenvolvendo novas estratégias de cognição, novos procedimentos, pela construção de sistemas funcionais integrados pela palavra. Durante o desenvolvimento, sinais observáveis nas atividades habituais da criança apontam o tipo de estratégia cognitiva que ela emprega para promover sua interação com o mundo exterior, revelando o seu estágio relacional. O espaço permeável à internalização de novas estratégias cognitivas é a zona de desenvolvimento cognitivo proximal (ZDCP) que se desloca, progressivamente, nas transições entre os estágios relacionais. O estágio concluído representa o nível de desenvolvimento cognitivo real (NDCR), aquilo que a criança consegue executar com seus próprios recursos. O estágio que se inicia a seguir representa o nível de desenvolvimento cognitivo potencial (NDCP), aquilo que a criança consegue realizar com auxílio. Na transição entre estágios, delimita-se a ZDCP, o instante em que ocorre a aquisição de novas formas operativas, onde o potencial (NDCP) se transforma em real (NDCR). Em cada ZDCP, distintas formas de internalização dependentes do NDC Real determinam os diferentes apoios que podem ser oferecidos para a concretização do NDC Potencial. As etapas do desenvolvimento relatam a construção do humano: a história das interações de cada indivíduo com o seu tempo e a sua cultura. São modelos construídos na história das sociedades humanas que orientam as formas de interação, levando simultaneamente a uma unidade de “eu” diferenciada dos outros “eus”, e a um lugar dentro do grupo social onde este “eu” se reconheça entre semelhantes. Nas peculiaridades de cada história se inscreve a identidade, que é a marca da diferença em relação aos outros indivíduos da espécie. A extrema fragilidade do bebê humano ao nascer torna-o dependente do adulto para sobreviver, de uma forma que não acontece em nenhuma outra espécie animal. O seu desenvolvimento, complexo e demorado permite que as influências da cultura se façam intensamente. É o domínio do código lingüístico que possibilita a aprendizagem por signos, a ampliação do universo cognitivo para além da percepção sensorial biológica, permitindo a abstração, fazendo a criança usufruir dos conhecimentos e das experiências acumuladas pela humanidade e inscrevendo-a na sociedade dos homens. É a fala que nos faz humanos, dando-nos acesso a uma forma superior de comportamento - o comportamento voluntário - construído como ato social, peculiar a cada cultura, mas trazendo em cada representante da espécie a marca da individualidade da sua história. O conteúdo das experiências, os tipos de habilidades adquiridas e o repertório de operações mentais construídas na internalização de formas socialmente organizadas de atividade fazem com que cada indivíduo viva o desenvolvimento como uma história particular, mas que reflete a história do seu grupo social, do seu tempo e do seu espaço na história da espécie. E, por se construir num ato social, o fazer de todos os homens verdadeiros humanos é responsabilidade de cada humano com a sua própria espécie. Em resumo, a construção do humano na perspectiva sociohistorica de L.S.Vygotsky considera que só oferecendo as condições adequadas ao desenvolvimento infantil para superar as desigualdades sociais pode-se alcançar a igualdade de oportunidades. Para concretizar esta possibilidade toma como pontos de reflexão e ação os seguintes conceitos:
Nota: Sinopse de palestra Espaço Labore 20 agosto 2010. Parte do texto constitui o capítulo 1 do livro “A CRIANÇA EM DESENVOLVIMENTO: CÉREBRO, COGNIÇÃO E COMPORTAMENTO”, e locução para o vídeo e o CD-ROM “A CONSTRUÇÃO DO HUMANO” apresentado no II Congresso Brasileiro de Neuropsicologia – Campinas – 1995. Anangélica Moraes Gomes
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May 2021
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